quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O capitalismo depois da crise - Perspectivas e temores sobre o futuro do sistema

Partido Socialista Brasileiro - PSB

16/11/2009 - Artigo de Roberto Amaral pronunciado no SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE A CRISE MUNDIAL (Hotel Braston, São Paulo, 20 e 21 de junho de 2009)

Queridas amigas, queridos amigos, companheiras e companheiros militantes, faço inicialmente, de coração, um agradecimento necessário ao Partido dos Trabalhadores, ao Partido Comunista do Brasil, à Fundação Perseu Abramo e à Fundação Maurício Grabois por haverem convidado o meu partido, o Partido Socialista Brasileiro, para participar deste Seminário estar e assim desfrutar da oportunidade de falar a este auditório. No curso dos debates até aqui travados, exorcizamos o capitalismo — ele foi revolvido como um cadáver exposto na pedra de mármore de um Instituto Médico Legal. Reviramos todas as suas vísceras, caminhamos pela sua biografia, fomos a seus antepassados. Alguns de nós ousaram e outros ousarão ainda falar de suas descendências. Concluída a diagnose, porém, coloca-se uma questão crucial para nós: o velho desafio que é 'O que fazer?'. Que o capitalismo era tudo o que foi dito neste encontro, desculpem, nós já sabíamos. O que se coloca para nós — partidos de esquerda, partidos socialistas, partidos comunistas — é outra demanda: no mesmo momento em que se instala crise do capitalismo, registra-se (sugerindo uma contradição) a inflexão do movimento social e da força revolucionária de nossos partidos. A social-democracia caminha para a direita, enquanto tradicionais partidos socialistas transitam para o campo correspondente às sociais-democracias atrasadas. Ou padecemos, a esquerda, pela ausência de referência política e doutrinária, ou mesmo programática a oferecer como contrapartida, ou carecemos de uma alternativa concreta. De uma forma ou de outra, coloca-se o desafio reclamando enquanto arde a crise: ‘O que fazer? O capitalismo não funciona. Está aí, batizada de 'crise', sua disfunção. Mas nada estaria resolvido se ele 'funcionasse', pois, permaneceria padecendo mal incurável: o capitalismo é incurável, porque é fundamentalmente aético. Ele não tem cura porque é imoral. Podem os bancos centrais fazer o que quiserem, mas o capitalismo continuará inaceitável — porque ele se baseia na exploração do homem pelo homem. Há uma alternativa — a construção socialista —, mas esta promessa não está no nosso horizonte. Temos de trabalhar como quem se apega a uma utopia, perseguir a construção do socialismo sabendo que o capitalismo não cairá de podre, nem que haverá a transição do capitalismo para o socialismo simplesmente via crise após crise. Independentemente da crise do capitalismo, o socialismo só vingará como resultado da ação revolucionária. É esta a questão que se recoloca para nossos Partidos — particularmente para aqueles, como os partidos brasileiros de esquerda, os quais, hoje, têm hoje funções e responsabilidades de Estado. Não podemos confundir o Estado com o Partido, nem vice-e-versa, mas não podemos renunciar aos nossos princípios socialistas e revolucionários, revolucionários porque socialistas. Estou convencido de que, finda esta crise — como ao final das crises anteriores —, o capitalismo emergirá fortalecido com correções de curso, ou, como dizem os economistas, vacinado, através de regulações, contra novas e futuras alucinações de mercado, isto é, preparando-se para produzir novas crises e conjurá-las.. Às vezes, tendo a dizer que não há crise do capitalismo. Se ela é constante e hodierna, se é uma característica funcional, não é crise. Talvez não seja inevitável que o capitalismo saia fortalecido, mas será inevitável o seu fortalecimento se permanecermos pura e simplesmente, analisando suas ‘crises’ e procurando as soluções tradicionais para ‘salvar’ o capitalismo, em nome do bom propósito de salvar nossos países.. E é isso, tão-só isso o que o mundo tem feito, e nele nossas administrações, as administrações socialistas dos países capitalistas, e nos países capitalistas os partidos socialistas for a do poder.. Desconheço qualquer experiência contemporânea que signifique o enfrentamento da crise s aprofundando a contradições do capitalismo. Estamos nós, inclusive, muito satisfeitos quando desmoralizamos o neoliberalismo ( e implicitamente estamos dizendo que a crise não ‘;e do capitalismo mas de uma exacerbação sua, o neoliberalismo) e dizemos que o capitalismo, para se salvar, teve de lançar mão do intervencionismo estatal, e com isso dizemos que esse intervencionismo é vitória nossa. Mas intervencionismo estatal não se confunde com o Socialismo!. A presença do Estado na economia é uma característica do capitalismo mundial. Do ponto de vista político o cenário de hoje está a nos convencer de que, ao fim da crise, emergirá a mesma hegemonia, a mesma hegemonia econômica e política das grandes potências capitalistas, Estados unidos à frente, simplesmente porque a crise capitalista, isolada, não implicou crise de hegemonia.. Não há outra hegemonia se contrapondo ou se oferecendo como alternativa à hegemonia norte-americana. Os Estados Unidos sairão da crise ainda como maior potência militar, técnico-científica e econômica. O que há, do ponto de vista da hegemonia, é uma tentativa de associação paralela. O que querem os outros países? O que querem os emergentes? O que desejam os BRICs? Serem ouvidos, serem considerados, mas jamais substituírem a força hegemônica. Quero dizer que temos de nos preparar para conviver ainda por muitos anos com o enfrentamento do imperialismo. Do meu ponto de vista, não haverá mudança do modo de produção em escala mundial, nem tampouco podemos esperar uma superação hegeliana do sistema interestatal capitalista. Não estão dadas as condições objetivas, nem as subjetivas. As condições subjetivas nós podemos construir, pela perspectiva de uma alternativa socialista a médio prazo. O que pode ocorrer, o que, talvez, pode ser uma tendência histórica, é que a agudização da crise leve — como levou no passado — a alternativas totalitárias, xenófobas, aos nacionalismos, aos protecionismos, à discriminação étnica, dentro do capitalismo. Por inexistência de atores e impossibilidade da guerra mundial, as guerras localizadas podem substituir a necessidade de produção do capitalismo. Este quadro se oferece em momento de crise do modo de produção industrial em todo o mundo. Quando falo em crise de produção industrial, estou falando em tendência mundial ao desemprego e ao enfraquecimento do proletariado, obrigado a transitar das reivindicações políticas para as reivindicações econômicas ou assistencialistas. Conservar o emprego, quase a qualquer custo, passa a ser a palavra de ordem. Falando com a responsabilidade de presidente da República, o maior líder sindical que este país já teve, hoje nosso maior líder popular, há pouco, disse o Presidente Luis Inácio Lula da Silva que, em tempos de crise, o que cabe ao sindicalismo é defender seus postos de trabalho. Ele não falou nada mais que a verdade. Isso significa um retorno da luta sindical para as postulações econômicas, afastando-se cada vez mais da lide política. É outro desafio que a realidade concreta coloca ao nosso enfrentamento e aos nossos deveres como militantes revolucionários. Temos, no Brasil, uma conquista importante a preservar, entre muitas outras: nossa integridade territorial, que ressalta quando olhamos — o que raramente os brasileiros fazem — na direção dos Andes, na direção do Oeste. Aqui, em contraposição à divisão de Estados da América hispânica, construímos uma América portuguesa com uma área de 8,5 milhões km² — o que nos condena a sermos um grande país. O Brasil não tem o direito de fracassar, de não conhecer o desenvolvimento, de não construir aqui uma sociedade sadia e igualitária, sob o reino da liberdade. Mas o Brasil tem também uma característica que contrasta com a tradição hispânica, que é nosso horror à ruptura, à revolução. Getúlio Vargas entrou na Revolução de 30 quase coagido, levado pelos seus companheiros de aventura comedida. Ele não queria a Revolução— seu projeto era simplesmente e ser reconhecido como presidente-eleito, no lugar de Júlio Prestes o ungido nas eleições defraudadas, e assim, simplesmente assumir a Presidência da República. Mais de cem anos antes, nossa Independência ( a ruptura colonial de Portugal) não resultou de luta social nem de revolução civil, nem de guerra de independência. Consumou-se como fruto de negociação da classe dominante, uma associação de portugueses e latifundiários brasileiros, negociando o financiamento da dívida portuguesa com a Inglaterra. O marechal Deodoro da Fonseca, o militar que proclamou nossa República, saiu de casa para depor o gabinete conservador que lhe era hostil. Assumiu a Presidência e ficou o tempo todo sem saber por que não o tratavam de “Vossa majestade”, como chamavam a seu padrinho, D. Pedro II, o monarca deposto. Enquanto vários países tiveram de enfrentar a guerra civil — os Estados Unidos se dilaceraram na Guerra da Secessão —, construímos a Abolição da Escravatura em doses homeopáticas. No dia 13 de maio de 1888, o que se consagrou, fundamentalmente, foi o pleito dos conservadores que tudo podiam ceder contanto que não se fizesse, com a abolição, a reforma agrária, pleiteada por Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. Esta marca da alma brasileira, a negociação, o compromisso, os descompromissos ideológicos, se se reivindica o mérito de haver contribuído para a querida unidade territorial do país, pode ser acusada de constituir-se em empecilho a qualquer avanço ou progresso social que exija ruptura. Daí a placidez de nossa história comungando com o longo processo exigido pelas transformações sociais. Evidentemente, quaisquer que sejam as características de nossos países, de nossos povos e de cada um de nossos processos revolucionário, a luta política contra a crise (suponhamos que ela esteja sendo travada em algum lugar) implica acumulação de forças. Mas a acumulação de forças não é um processo em si, autônomo, que se justifica por si: acumular forças para quê? Não podemos guardá-las como se preservam informações em um banco de dados… No momento, a correlação de forças em nosso país é desfavorável à esquerda. Não nos iludamos com o quadro brasileiro. Estamos dependendo da liderança popular extraordinária, anormal e desconhecida em toda a História do país, que é a liderança pessoal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sua liderança pessoal é maior que a reunião das forças dos partidos de esquerda que integram a base de seu governo! Isto por si só, é um desafio que fala de sua potência e de nossa fragilidade. Harmonizar esses elementos é desafio importantíssimo, principalmente quando nos aproximamos de uma nova eleição presidencial. No caso brasileiro, eleição importantíssima, pois renovará todos os parlamentos estaduais, o parlamento federal Câmara e Senado federais) e todos os governos de estado. Não está distante de nós a possibilidade de um retrocesso, que seria a eleição de qualquer representante do núcleo de poder derrotado em 2002 e 2006. Mas, ao contrário do que está ocorrendo na Europa — onde nos ameaça o avanço das forças reacionárias, retrogradas -- assistimos na América do Sul a fenômeno absolutamente novo em nossa história: a emergência das massas. Estou falando em “emergência das massas” com todos os riscos, pois, em muitos casos, não se trata de massas organizadas, e emergência com a qual poucos de nossos partidos podem se considerar protagonistas. É fato inédito na história dos nossos países que um índio governe a Bolívia, que um crioulo governe a Venezuela. As novas lideranças desses países são originárias e não representantes da burguesia. Não são europeizadas. São índios, são camponeses, são crioulos. E ninguém pode mais chamar a isso de populismo, como sempre o fez a direita brasileira, reproduzindo a direita internacional. Os originários desses países é que estão fazendo sua política, sem intermediação. E isso incomoda, sobremodo, nossas classes dominantes. Em meio ao crescimento dos movimentos sociais e à emergência popular no Paraguai, no Equador, na Bolívia e na Venezuela, porém, registra-se a quase irrelevância da presença dos partidos de esquerda. Pode ser que desse espontaneísmo das massas e do voluntarismo de seus líderes resulte, ameaçando-o, a fragilidade ideológica do processo. E eis uma preocupação a mais. Precisamos entender — e pelo menos o Brasil de Lula entende — que o processo social, seu avanço, seu bom êxito, está diretamente vinculado ao sucesso das experiências progressistas da América do Sul, vale dizer, do sucesso político e administrativo dos governos que estão protagonizando. Eis por que nossa solidariedade internacional deve ter seu primeiro ensaio na América do Sul, fortalecendo, protegendo e aprofundando essas experiências. Já tivemos exemplos de que isso é possível, caso que é o da concertação de países em torno da manutenção do regime constitucional boliviano. Entre nós, no Brasil, assistimos, principalmente em 2006, à mais espetacular manifestação popular deste país.O presidente Lula, depois de enfrentar — e agora pode-se dizer isso — uma tentativa de golpe em 2005, enfrentou uma eleição verdadeiramente plebiscitária contra todas as forças conservadoras do país e toda, repito: toda, a imprensa brasileira. O resultado do processo eleitoral questiona o papel da imprensa como manipuladora da opinião pública e construtora do pensamento da classe média e dessa influir na formação da opinião das grandes massas. Essas, nada obstante o ataque ideológico unilateral, entenderam que Lula e sua política se identificavam com os interesses do povo, do homem comum e pobre. Sem o presidente na disputa, esse fenômeno brasileiro particularíssimo de emergência das massas se repetirá em 2010? Não sei e não posso apostar como serão as eleições de 2010, mas o último processo eleitoral destruiu aquele poder que a imprensa se supunha ter: o papel de conduzir, através da classe média, a chamada opinião pública nacional — que não é opinião pública, mas opinião publicada. O presidente Lula foi eleito e consagrado em processo eleitoral democrático e universal. Antes desse fenômeno chamado Lula, e mesmo nas suas primeiras campanhas, as esquerdas não tinham acesso às grandes massas, às massas desorganizadas, aos desabrigados, aos sem teto e sem terra, aos ‘descamisados’.. Tratava-se de privilégio do populismo, do assistencialismo, da influência do poder econômico nas eleições. Em São Paulo, nossa principal província, reinava populismo o mais reacionário, como o ademarismo, o janismo, e, mais recentemente,. Mas em 2006 o povo brasileiro fez uma opção política, dando às costas ao apelo populista, ao papel da classe-média, ao papel da imprensa, resistiu mesmo à pregação do moralismo anacronicamente udenista, que vitorioso e derrotado com os militares, renascia na cruzada na imprensa. . Com toda a crise do moralismo e ação dos meios de comunicação de massa, das forças conservadoras, das federações da indústria e do comércio, o povo identificou um ponto de apoio, nosso lado, e um adversários: nossos adversários. Caberá agora saber ( e quem saberá?) se teremos competência para conservar essa aliança, em cuja construção as massas foram mais sujeito-ativo do que nossos partidos. Mas seremos nós os responsáveis pela manutenção desse pacto. Este desafio já está colocado para a esquerda brasileira. Para alcançar tal objetivo será necessária a construção de um projeto de desenvolvimento nacional. Falta à esquerda brasileira construir um projeto de nação. Que nação queremos? Como construir essa nação? Quais são os passos necessários para essa construção? Temos um objetivo estratégico que nos une — e que é a construção do socialismo. De um socialismo que nós ainda não definimos. Sabemos apenas que ele não pode ser a reprodução do socialismo que nos foi dado conhecer e que não será construído através de nenhum assalto a nenhum símbolo de poder, seja uma reinventada Bastilha, seja um renovado ‘Palácio de inverno’. Dependerá, essa construção, da mobilização das grandes massas, de seu papel de sujeito, de sua consciência coletiva, do papel de suas lideranças, é verdade, sem espaço para os ‘guias geniais’. Muito obrigado! * Roberto Amaral é cientista político, professor universitário, vice-presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ex-ministro de Ciência e Tecnologia (2003-2004) no governo do presidente Lula.
Roberto Amaral

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