“(Mario Sergio) Conti errou na ida e na volta. Errou na volta, porque, na volta de Collor à planície, a reportagem decisiva foi a da IstoÉ com o motorista Eriberto França – e isso não ficou claro no (livro) Notícias do Planalto (da editora Companhia das Letras)..
Errou na ida, porque na ida de Collor ao poder, o episódio decisivo foi a edição do debate entre Collor e Lula, feita no Jornal Nacional. ENotícias descreve esse episódio de forma superficial, que atenua a responsabilidade de Roberto Marinho e de Alberico Souza Cruz, diretor dos jornais em rede a Globo.
Só isso explica O Globo de 27 de novembro [de 1999] dedicar ao livro(de Conti) três páginas no primeiro caderno. Como se sabe, O Globonão recebia um lançamento editorial com tanto entusiasmo desde aEpístola aos Romanos.
Sobre o episódio da volta, quando Conti dirigia a Veja, a revista concorrente de IstoÉ, o livro Imprensa e Poder: Ligações Perigosas, de Emiliano José, é mais completo do que Notícias.
Vou tratar da ida.
Então, dezembro de 1989, eu era editor de economia da Rede Globo. Na sexta- feira, dia 15, ao chegar à redação, percebi que uma tempestade se formava. Conversei com o Ronald Carvalho, editor de política. Com Wianey Pinheiro, responsável pela cobertura das eleições e também responsável pela edição do debate que o jornalHoje, ao meio-dia, tinha exibido. Zanzei pela redação e ilhas de edição e soube:
• O dr. Roberto não gostou da edição de Hoje e mandou o Jornal Nacional dar tudo o que fosse bom para o Collor, e tudo o que fosse mau para o Lula.
• O Alberico mandou o Ronald editar como se fosse a luta em que o Mike Thyson destroçou o pobre coitado do Pinkle Thomas, dias antes transmitida pela Globo.
Isso, o que eu ouvi.
Agora, o que eu vi.
Vi por ali, como se fosse um dos nossos, o Daniel Tourinho, presidente do PRN, o partido do Collor.
Vi o Alberico na ilha (de edição). Não importa se ele disser que não editou.
Como todos os profissionais da Globo sabiam, o Alberico não tinha idéia do que fazer numa ilha de edição. Ele se sentia tão à vontade ali quanto no hall de entrada do Louvre.
Imediatamente após o Jornal Nacional, liguei para o Ronald e perguntei – não me lembro exatamente das palavras – ‘como é que você fez uma coisa dessas?’
Ele respondeu que decidiu exagerar, forçar a mão, para o espectador perceber que se tratava de uma manipulação.
Depois da publicação de Notícias, o Ronald me contou também que, logo após o Jornal Nacional, recebeu um telefonema do dr. Roberto para dizer que, daí para frente, era assim que queria a cobertura política.
Conti tem quatro explicações para o que aconteceu: 1. ‘O único critério objetivo’ para editar um debate de forma imparcial é dar aos dois candidatos o mesmo tempo (página 269). 2. O dr. Roberto determinou, muito antes, que a cobertura da campanha obedeceria à regra: todos os candidatos teriam o mesmo tempo. 3. O dr. Roberto não revogou essa ordem, ao determinar que a edição deveria ‘evidenciar que Collor vencera’ (página 270). 4. Os responsáveis pela indisciplina foram Alberico e Ronald (página 270). 5. A manipulação do debate não tem a menor importância, nem a cobertura parcial (‘o bom e o mau’), que a Globo fez toda a campanha. Pesquisas (páginas 273 e 274) demonstram que a decisão de votar em Collor independia do que a Globo fizesse. Collor encarnava ‘um Brasil… moderno. Como nas democracias da Europa Ocidental, o eleitor se expressara… com base no posicionamento (sic) ideológico…’ (página 274).
Vamos por partes.
Tempo em televisão não é critério para avaliar objetividade. Ao contrário. Dependendo de quem está na ilha de edição, dar mais tempo pode destruir um entrevistado. Quanto mais não é melhor.
Na linguagem da política, aliás, tempo não tem nenhuma relação com persuasão. O discurso de Lincoln em Gettysburg pode ser lido em dois minutos e sete segundos.
O fato de a Globo distribuir o tempo com ‘critério objetivo’ levanta suspeitas, também em outra circunstância. Na cobertura da campanha Fernando Henrique vs. Lula, a Globo deu aos dois o mesmo tempo. Mas, e as inúmeras e redundantes entrevistas do ministro da Fazenda Rubens Ricupero sobre o Plano Real? Ricupero já disse desconfiar que as entrevistas se desenrolavam, na verdade, num palanque.
(Espera-se que essa questão fique esclarecida, um dia, quando sair o livro – título provisório – Laços de Ternura, que está sendo escrito por um jornalista nos Estados Unidos – cujo nome não posso revelar – sobre ‘ a imprensa e Fernando Henrique Cardoso’.)
Se fosse uma grave indisciplina desrespeitar a ordem de distribuir o tempo por igual, o Alberico não teria sido nomeado para o cargo do Armando meses depois.
Corre por baixo de toda a narrativa de Conti a justificativa de que Collor ganhou o debate: o próprio Lula achou isso.
Suspeita-se que Manga, aquele notável goleiro do Botafogo, também achasse que o Collor ganhou o debate. E daí? O papel de um jornal é reproduzir o que aconteceu. E o que aconteceu não estava no Jornal Nacional. Se houve uma vitória no debate, não houve uma goleada. O que foi ao ar no Jornal Nacional é uma manipulação. A edição do Pinheiro e do Carlos Peixoto, a do Hoje, era uma edição que os profissionais da Globo subscreveriam. (Com duas ou três exceções, é claro…) Porque ela reproduzia o que aconteceu, em tamanho menor e é para isso, como os cartógrafos, que serve um editor.
Se o Lula tivesse ‘vencido’ o debate, o Jornal Nacional daria com uma divisão ‘criteriosa’ do tempo – a versão que mostrasse que Lula ganhou?
E a pesquisa? No Hoje e no Jornal Nacional, colada à edição do debate, havia uma pesquisa da Vox Populi (que trabalhava para o Collor, como ressalta Conti): por 44% a 32%, a opinião pública considerou que Collor venceu o debate. Se Lula tivesse ‘vencido’? OJornal Nacional daria uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo?
Sobre o impacto da cobertura da Globo no eleitor. É bom lembrar que, segundo as pesquisas, Lula e Collor foram para o debate empatados.
A hipótese do livro – os três programas do partido foram mais importantes para a vitória de Collor do que a ajuda da Globo (página 274) – tem tanto valor científico quanto a proposição inversa. Na página 276, por exemplo, Boni diz: ‘Supor que o debate tenha influenciado a eleição é ridículo’.
Nos Estados Unidos, a literatura sobre o assunto é farta. Há quem diga que o célebre debate de John Kennedy e Richard Nixon – em que Nixon apareceu com a barba por fazer e a toda hora limpava o suor do rosto – não teve a menor importância. O eleitor já decidira votar em Kennedy. Tanto isso deve ser verdade que, dessa data em diante – foi o primeiro debate presidencial transmitido ao vivo, pela TV – todos os candidatos à Presidência, pelo mundo afora, vão aos debates na televisão de tamancos, barba por fazer e os cabelinhos do peito a sair pela camiseta em V.
O livro de Conti não mete a mão no câncer.
E é por isso que o título tem o sabor de tofu. Notícias do Planalto – o que diz sobre ‘a imprensa e Fernando Collor’?
Trabalhei no Jornal do Brasil com um profissional exemplar, José Silveira. Ele dizia que ‘matéria que não tem o que dizer não tem lead; e matéria que não tem lead não dá título’. O livro de Conti não deu título porque não tem lead. Não tem tese. Não dá murro. Não tem uma revelação estarrecedora.
Aquela edição foi a do debate do Collor. Poderia ter sido a do Quércia, porque, a certa altura, o candidato de Roberto Marinho era o Quércia. E, então, o Alberico vinha a São Paulo, toda semana, despachar com Carlos Rayel, homem do Quércia para a imprensa.
Quando Collor começou a subir, o Alberico ficou amigo pessoal do Collor e falava com ele todo dia, por telefone – mesmo depois de presidente. Como se diz amigo pessoal de Fernando Henrique. E se preparava para ficar amigo pessoal de Ciro Gomes quando caiu, de tão amigo se tornara de Sérgio Motta.
O importante não é o Alberico. O Alberico fazia os amigos que o dr. Roberto deixava. O Alberico administrava o varejo e abria portas que Roberto Marinho, sozinho, não abriria. (O livro não deixa claro que Collor detestava Roberto Marinho.)
O episódio do debate é o ponto culminante de uma política de manipulação de opinião pública, através do noticiário da maior rede de televisão comercial do mundo, fora dos Estados Unidos. Uma política que não começou com o Collor nem acabou com ele. É uma pena que Conti não tenha conseguido daí extrair um título. Poderia ser O Bom e o Mau – como a imprensa cobriu a campanha Collor vs. Lula. Já facilitava. Depois viriam O Bom e o Mau II, O Bom e o Mau III…”
“O bom e o mau”, copyright CartaCapital nº 113 (22/12/99)